Dia 25 de Julho, dia do escritor.
Comecei o dia pensando: Será que posso me considerar uma escritora? Quais os quesitos necessários para que eu me auto reconheça como tal? Se sou, quando comecei a ser?
Para tentar responder, tentei lembrar de quais foram minhas primeiras escritas. Mas antes das escritas, quais foram minhas primeiras leituras?
Por sorte, bem hoje, no dia do escritor, escrevo do teclado da casa de minha mãe, em São Paulo. Estou no campo de pesquisa de meu passado.
Essa estante é a mesma de minha infância. Ela ainda existe tanto quanto eu.
Tudo bem, naquela época morávamos em outra sala, ela tinha mais outros três módulos, e seu papel era tido como principal no cômodo central da casa. Hoje ela não exerce mais o papel de protagonista. Encontra-se na sala dos fundos, pois na sala da frente o rack com a tela plana brilha na mente da família silenciosa.
Mas naquela época, na casa velha...
Esse aparelho de som, mágico, onde apenas meu pai continha seu poder, nos remetia a outro lado do oceano, através de uma língua familiar que flutuava sobre castanholas, violões guitanos, panderetas e gaitas galegas. As vezes, aquelas enormes bolachas pretas tocavam tantos instrumentos juntos que eu não sabia como poderiam caber tantos sons num objeto tão fino. E os nomes de quem tocavam ou cantavam eram lindos e soavam pesados como as orquestras importantes: Vivaldi, Curro de Utrera, Manolo Escobar, Antonio Molina, Julio Iglesias, Cassino de Sevilla, e depois, num passado mais recente, algo mais mouro como Gipsy Kings.
E, em algumas noites, após o jantar, a mágica se fazia e a música invadia minha alma e apenas meu pai podia falar, atentando para mim e meu irmão: Escutem quantos instrumentos vocês podem identificar. Escutem e sintam o fôlego de Antonio Molina. Pare de falar, menina, aprenda a escutar.
E eu escutava, junto com meu coração que batia com o ritmo.
Apenas meu pai podia falar.
E quando nos calávamos, ele contava. Contava para o ar, não para nós. Mas muito curiosos e sem educação que éramos, escutávamos seus pensamentos altos sobre viagens em alto mar, neve, festas nas florestas, trabalhos em minas, lobos noturnos, namoros escondidos. Num tempo onde eu não existia. E eu ia imaginando um pai que eu não conhecia, e ia reescrevendo as memórias que não eram minhas em minha mente, construindo minhas raízes através do meu antepassado mais próximo: meu pai...
Seu Manolo trabalhava muito. Saía de casa ainda à noite e chegava para jantar, e depois da janta, cama. As vezes, ele nos dava de presente, a magia do aparelho de som e suas estórias antes de dormirmos.
A ordem era: a estante não é brinquedo: O aparelho de som, não podia-se nem pensar em mexer; os discos, ficavam guardados atrás das portas da estante; as garrafas de vinho atrás da porta do barzinho no meio da estante; e os livros... Como eram lindas aquelas lombadas vermelhas, brancas, azuis escuras e douradas... Os livros nas prateleiras da estante.
Durante o dia, eu a olhava, cheia de segredos lindos de comer apenas com os olhos. Escutar, de vez em quando. Cheirar e tocar, nunca.
Mas quando o pai ia trabalhar....
Ai, minha mãe querida! Sempre nos protegeu e nos encobriu: Pegava um volume enorme da Conhecer, ou do livro dos Bichos e folheava para nós, mostrando-nos as ilustrações, como nos apresentando a algo sagrado. Com o dedo apontava as letras e ia lendo, decifrando palavras e imagens e expondo mundos científicos, históricos e geográficos que nem nas estórias de meu pai eu conseguia imaginar.
E eu ia escrevendo, em minha memória, mundos diferentes dentro do mundo que era meu: Dinossauros e caravelas que se misturavam numa linha do tempo incompreensível, e que agora só existiam naqueles livros de lombadas bonitas, que não podiam ser tocados, e na minha memória.
Nessa época, conforme eu distorcia as informações pela voz melodiosa de minha mãe e pelos causos duros de meu pai, eu já criava minhas próprias ficções.
A partir daí o desespero de por minhas ficções mentais no papel se deu início, e quando conheci as rimas então, só ampliou-se a angústia, mas isso já é assunto pra outra história.
O importante é que hoje, quando me deparei com essa estante, eu já podia tocá-la como quisesse: Ninguém a vigiava.
Mas com todo o respeito, apenas levantei um pouquinho a toalha do som para que ele se parecesse mais guapo na foto. Não tirei nenhuma lombada do lugar, mesmo elas já estando tão encardidas, apagadas e estropiadas. Não abri nenhum volume para mostrar seu interior, nem as portas para ver as capas dos LPs guardados na parte de baixo.
Apenas os olhei. E os registrei. E isso foi o suficiente para que as respostas das perguntas feitas no início do dia se formassem em minha mente:
Meus pais me geraram a cultura artística embrionária. A estante de meus pais me pariu culturalmente.
Feliz dia do escritor!