Oie, leitores!
Seguindo o Projeto "Aperte a tecla", lá do blog
Na estrada da fantasia da minha amiga blogueira Marina Ramos, saiu por aqui no Língua e Literatura o conto do mês de agosto, bastante atrasado, mas é nisso que dá abraçar todos os projetos que se vê pela frente. O tema de agosto era "baseado em fatos reais", e vou lhes contar, realmente o causo é real, ouvi muitas vezes, de verdade!
Espero que gostem:
Onde há fumaça, há fogo...
Já ouviram aquela expressão que diz que "onde há fumaça há fogo"? Pois então, essa estória que vou contar, já a ouvi em vários lugares por onde passei aqui na região de Bragança Paulista.
Ora é contada por crianças pequenas, que na sala de aula, se apavoram só de recordar; ora é contado por adolescentes que, descrentes, apenas reproduzem aquilo que ouviram para tirar um barato dos colegas e ora quem conta são os mais antigos que, com toda sabedoria, apontam os detalhes da estória causando arrepios tremendos na espinha.
Se é verdade, não sei. Mas onde há fumaça, há fogo.
Há alguns anos atrás. estava eu passando uns dias na casa da minha comadre em Joanópolis, quando resolvemos aceitar um convite pra tomar um café de fogão à lenha na casa de Seu Ramos, vizinho de alguns quilômetros de distância.
Eu, que na época ainda morava na cidade grande, me impressionava com tudo na roça: a caminhada ao ar livre, as grandes montanhas de pasto verdejante, o ar com cheiro de estrume fresco, as pedras reluzentes na estrada de chão, a simplicidade das casas abastecidas pela água do poço aquecida na serpentina do fogão... mas o que mais me impressionava era a amistosidade, a recepção. Eita povo receptivo!
Chegamos na casa de Seu Ramos e Dona Pepa já foi nos oferecendo uma cadeira ao lado do fogão, bem no meio da cozinha, para esperar o café, que por sua vez esperava dentro de um comprido coador de pano a água ferver. Regados a biscoitos de polvilho, Sr. Ramos perguntou, só por educação, claro, como estavam as coisas na cidade.
- Então ocê é de São Paulo?
- Sou, sim senhor!
-Já fui lá algumas vezes. Mas não gosto não. Quando preciso ir tratar de negócios, mando um de meus filhos. Prefiro o trabalho do sítio.
- É, São Paulo é uma loucura mesmo!
-Loucura? Bão, daí depende do que ocê chama de loucura. Se eu começar a te contar as coisas que acontecem por aqui, ocê também vai achar que esse velho, mesmo morando na roça, é louco.
-É nada, Seu Ramos! Nunca pensaria uma coisa dessas do Senhor! - Afinal eu estava com um senhor de oitenta e dois anos...
- O véio, conta da semana passada, aquilo lá que aconteceu pros lados da cachoeira. - Pediu Dona Pepa segurando o avental que ia amarrado na cintura e com um sorriso meigo no rosto, como que para acalentar o que viria pela frente.
- Fica quieta, muié! Acha que eu vou querer espantar a visita nova?
Vi Dona Pepa cortando queijo fresco para nos servir e nos amarrar ali naquela cadeira junto ao fogão de lenha.
- Que nada, Seu Ramos! Agora fiquei curiosa! O que aconteceu perto da cachoeira? Não vão me dizer que tem Iara por aqui, né?
- Bão, se tem Iara ainda num vi, apesar que o Zé do Estribo, que mora lá depois da campina, diz que nunca mais se arrisca ir pros lados do Lago Fundo. Mas daí até existir, já é outro causo.
- Se não é Iara, então pode contar que eu aguento.
- Bão, no começo da semana passada, meu filho que mora ali no pé do primeiro morro, veio logo no amanhecer de terça-feira bater na minha porta. E não era pra falar de tombo de vaca ou de fuga de cavalo, não. Veio me contar dos barulhos de assombração que tinham deixado ele de lampião ligado a noite toda.
- Assombração, é?! Que tipo de assombração? - Ah, Seu Ramos, logo eu, uma pessoa tão espiritualizada, nunca vou ter medo de assombração! Esse foi o pensamento que me veio à cabeça, mas por respeito apenas falei: - Algum fantasma?
- Fantasma, qual o quê?! Alma perdida se afasta com reza braba. Mas assombração, é coisa das sombras. Existe coisas nesse mundo que não são nem de Deus nem do Diabo. O que são? Ninguém sabe! Mas as vezes aparecem por aqui ou por ali, apavorando o povo com o que não se conhece.
Aquelas palavras bateram no meu peito deixando-o oco: coisas que fogem do domínio de Deus ou do Diabo? Calei-me e me pus a escutar.
"E vou te falar, nunca vi Benedito tão apavorado quanto naquela manhã. A cara dele era branca como cera de toco de vela comida, toda escorrida de suor. Uns olhãos que pareciam que iam comer o mundo. No começo ele não falava coisa com coisa. Gaguejava mais do que fusca velho.
Mandei primeiro ele se aprumar e tomar uma fresca na varanda, com um copo d´água pra se acalmar. Sentei do lado do Dito, coloquei a mão no joelho dele e ele desembuchou:
-Parecia coisa da mula-sem-cabeça, pai!O chiado do fogo estalando a noite toda. Um fogo ardente, mas que não tinha clarão não. Nenhuma luz por fresta nenhuma. Só a crepitação andante. Mas não tinha casco não, bem que aprumei meu ouvido, e não ouvi trote nenhum. Só aquele fogo sem luz estalando em derredor, entrando bem aqui no fundo do peito. Eita estalido apavorante, pai! Parecia que queimava minha alma! E parecia que chia cá dentro até agora!
Fiquei intrigado de ver o susto do Dito e tentei acalmar:
- Mas qual o quê, rapaz! Para de bestagem! Ocê devia é de estar sonhando!
- Tava nada, pai! Pergunta pra Zefa, que foi ela que escutou primeiro e me acordou no pavor pior das coisas.
- Eita, menino, que assombração assim nunca que ouvi falar. Tão falando lá em Minas de um tal de Chupa cabra, será que já veio pra cá, foi?
- Se chupa cabra ou boi, não sei não, pai, mas tô achando melhor a gente adiar a caçada de amanhã.
- Qual o quê, rapaz? Vira homem que essas coisas não adiam caçada nenhuma não."
Enquanto Seu Ramos contava, fiquei pensando no caminho que fiz para chegar até o sítio dele. Será que ali no meio daquela mata existiria algum encantado desconhecido? O que seria aquele estalido que Dito ouvira? Seria algo com forma? E o pior: Será que nos viu pela estrada?
De repente Dona Pepa me acorda servindo um copo de café fumegante e mais um pedaço de queijo.
Seu Ramos continuou:
"E ocê sabe que homem de sítio não arreda o pé de assombração, então celamos os cavalos, pegamos as armas e saímos pelo caminho buscando anta, capivara, tatu, ou qualquer caça que fosse boa de tamanho.
Daí que no galopeio do caminho apareceu uma encruzilhada em formato de "y" que parece que nunca que eu tinha visto naquele caminho que ficou estranho que só. E olha que bem no meio da encruzilhada tinha um oratório, e lá de dentro dele nós vimos duas luzes vermelhas no fundo do escuro de dentro do oratório.
Assuntei pro Dito o que ele achava que era. Ele olhou pro João que não tirava os olhos da luz vermelha. Já tinha visto que os dois estavam se borrando e logo pensei "Mas que afrouxados que criei!". Falei baixo pros dois:
- Larga de frouxisse que é vela acesa!
Quase que num ouvi a resposta do Dito.
- É nada, pai, que parece dois olhos!
- Então prepara a arma que é onça."
- Afe, Seu Ramos! Vocês pegaram uma onça na caçada?
- Qual o quê, menina! Antes fosse!
Aquela resposta fez os pelos do meu corpo se eriçarem, parecia que senti um calor incômodo no pescoço, uma presença de um hálito de não sei o quê. Olhei pra trás, não vi nada. deixei minha mão na nuca, só por costume, e continuei ouvindo o causo.
"- Quando no susto, aquelas luzes se arredondeiam. virando dois olhos de fogo, e bem no meio, um focinho comprido. Era a cara de um tatu. Mas os olhos lampiavam fogo pela cara toda do bicho. E ocê pensa que ele andava bem? Qual o quê que ele tava avoando em cima do chão que nem pluma. Só de olho em nós.
- E com aquela visagem, a anta do João no arrepio da espinha que teve, disparou a espingarda."
- Ufa, que susto, Seu Ramos! E o bicho morreu e era só um tatu, né?
"Qual o quê! Aquele fogo veio estalido voando pra cima de nós. E bala nem tinha o que matasse não. O causo agora era tocar galope pra fora do caminho da mata. Uh, e corremos bem, viu? Porque fugir a gente não foge, mas também não carecia ficar lá na frente do bichão pra saber se era coisa de que.
E enquanto que a gente galopeava, o fogo que estalava na orelha não parava mais de queimar. Um fogo gelado que nem frio na espinha que não pára de arrepiar.
Medo, a gente não tem, não, mas quem que gosta de frio na espinha? É por isso que a gente correu sem olhar nem mais vez pra trás.
E corremos com o bicho no encalço até sair da estrada da mata. E foi que nem que tirar com a mão. Foi sair da mata pra acabar o fogo arrepiante. E daí que fomos olhar pra trás. E lá no escuro, no meio dos angicos, só aquelas duas bolas de fogo, olhando bem pra nós e dizendo bem no meio do peito nosso.
'Em tempo de prenhisse de bicho não se entra em mata! Só porque vocês não tem época de prenhar, quer virar o verme do mundo!?'
E aquilo ficou pra sempre num zumbido aqui dentro da cachola, que até hoje não teve fim."
- Eita, Seu Ramos! Que estória! - Foi a única coisa que consegui dizer tremilicando todo o corpo.
Rapidamente a prosa perdeu o fogo, o café secou, o biscoito esmigalhou e o dia entardeceu, e o caminho da mata nos esperava de volta.
Olha, nunca andei tão rápido um caminho de volta na minha vida: não senti cheiro de estrume, não vi estrada e nem o pôr-do-sol. E quer saber mais? Nunca ouvi tanto barulho no sítio como naquela noite mal dormida.
O Sr. Ramos? Deve estar bem! Faz tempo que não o vejo.
Se eu vi o tal tatu? Claro que não! Se eu acredito? Não sei, mas onde há fumaça, há fogo...
Boas Leituras!